Poema Circular
Não, não me procurem mais
No meu velho endereço lá no campo
Eu estou me mudando
Eu estou de mudança
Estou mudado
Compreendam
No meu velho endereço lá no campo
Só havia ficado o coração
Já menos moço, para os frios de agosto
Para os ventos parados de verão
O resto, braços e pernas
Mãos, tronco e cabeça
Há muito tempo já pagava fretes
Num caminhão de carga que os trazia
Pela fita do asfalto
Meu um a um
Claro, vinha os pedaços como resistindo
E quanto resisti
Partido, repartido
A metade de lá chamava a outra
Que havia se mudado para aqui
Eu ia
E no meu velho endereço lá no campo
Estava a bombacha vazia, no espaldar da cadeira
E como é triste uma bombacha vazia do seu dono
Meu chapéu sem cabeça nos cabides
Um lenço Colorado sem pescoço
As botas paralíticas junto ao penico de louça sob a cama
O meu jeito de andar perdido delas
Não, não me procure mais no meu velho endereço lá no campo
Eu estou me mudando
Eu estou de mudança
Estou mudado
Trouxe nas malas anos de recuerdos
As esporas do avô
Um mango retovado
Uma franja de pala, um barbicacho
Um estribo sem loro, uma cambona
Uma panela com terra, um boizinho de argila que não berra
E um cavalo de ventos para andar
Tudo isso nas malas, elas que são o avesso da gente
Porque são íntimas de nós, e nos carregam
Não, não mandem mais ao meu velho endereço lá no campo
Livros de versos, discos e romances
Revistas e jornais
Nem avisos de amigos que morreram
Nem notícias de netos que chegaram como
O menino Jesus pelos natais
Tudo isso
Vinho de alma, pão para matéria
Tem um novo endereço de remessa
Uma casa de brisas e tijolos
Numa cidade que eu amei depressa
Pelas raízes campeiras que ainda encontro
Nas ruas de seus bairros e travessas
Ah, quanto cantei!
De alma limpa e boa boca
Em salmos e protestos e orações
O meu terrunho onde deixei plantado
O que tive de melhor no coração
Um dia os que virão
Hão de saber que eu estanciei por lá
Nesta casa amparada por retratos que vigilam
Na sombra como guardas de uma herança
Que eu não sei quem herdará
Na casa, fiéis como estes gatos
Que não mudam, embora se mude o dono e vá se embora
Estarão meus livros e a vitrola
Para falarem por mim pelos meus versos
E cantarem por mim pelas cantigas
E assim, me hão de encontrar
Os que saudarem nos portais do terrunho
"Ô de casa"
Que no meu tempo, escancarava portas
E abria corações para os andantes
Não, não me procure mais no meu velho endereço lá no campo
Eu estou me mudando
Eu estou de mudança
Já mudei